Na Romênia as pessoas falam mal do sotaque das pessoas de outras regiões sem o menor pudor. E não falam mal zuando, falam sério mesmo. Chamam de “caipira”, dizem que destroem a língua romena e ninguém nem olha torto. É socialmente aceitável. Também falam mal de ciganos abertamente. Alguns dizem até que são “uma raça estragada”, geneticamente danificada, embora esses sejam mais extremos do que a maioria. Mas mesmo os “moderados” acham normal quando ouvem. Estão acostumados, e mesmo que discordem da escolha de palavras eles não iriam defender cigano, porque afinal tudo que eles sabem fazer é roubar, pedir esmola e destruir a imagem dos romenos na Europa ocidental. São um povo parasita sem cultura e não adianta nada tentar integrá-los porque eles mesmos não se esforçam.
Que fique claro, eu não quero generalizar, é claro que existem romenos anti-racistas, defensores dos direitos humanos, inclusão social etc. Conheço vários e, considerando que as pessoas mais racistas que eu já conheci na minha vida foram na Romênia, tenho respeito especial pela persistência e mente aberta deles. Mas eu nunca vi ninguém se pronunciar de imediato quando alguém faz um comentário de tendências racistas ou xenofóbicas. Não me entendam mal, no geral são muito abertos comigo e com estrangeiros de outros países, até porque aqui tem muito pouco imigrante e pessoas de etnias diferentes e os poucos estrangeiros são estudantes universitários com quem o povo simpatiza. Mas cigano é como se nem contasse como etnia. Os mais progressistas até brincam que, ao ser acusado de racismo, um típico romeno diz “Não, que isso! Não tenho nada contra negros!”
Não é minha intenção passar uma imagem negativa da Romênia. Eu gosto de morar aqui e o país merece uma reputação muito melhor do que tem na Europa ocidental – desde a entrada da Romênia na UE, muitos países têm problemas com imigrantes romenos e muitos por ignorância imaginam que toda a Romênia se resume a guetos ciganos e vilarejos rurais perdidos no tempo, o que está tão errado como imaginar que o Brasil se resume a florestas e favelas. Mas eu sempre fui um “hater” rabugento e não sinto que vivo uma vida plena se eu não expor constantemente os problemas que eu observo na sociedade onde eu vivo. Eu odeio a dinâmica social de ser um imigrante e como ela tende a me impedir de fazer qualquer comentário negativo sobre o país onde eu estiver vivendo, por mais construtivo que eu estiver tentando ser.
Também é importante deixar claro que, embora eu esteja criticando de certa fazendo um contraste com o Brasil, isso não quer dizer que nossa terra esteja muito melhor. Pelo menos os ciganos daqui não estão sendo torturados e mortos por policiais corruptos em interrogatórios ilegais, espancados por “justiceiros” sem direito a julgamento em plena luz do dia, lançados pela janela de trens em movimento por skinheads ou incendiados por adolescentes enquanto dormem em bancos públicos. Isso é ótimo. Mas não significa que devamos nos dar por satisfeitos.
O problema da discriminação contra migrantes de outras regiões é ainda menos grave, mas tendo como referência o cenário de discriminação contra nordestinos no sudeste do Brasil, é difícil não simpatizar com eles, e eu não consigo deixar de me contorcer quando ouço demonstrações descaradas de preconceito linguístico por algumas pessoas de classes mais altas e o tom desaprovador com que criticam falantes de dialetos menos prestigiosos.
Além do mais, quando digo “racista”, eu não me refiro somente a pessoas que realmente acreditam na inevitável inferioridade biológica de outras raças. Estes também existem, mas não conheci muitos.
“Temos problemas naturais, fisiológicos em algumas comunidades romenas, especialmente entre cidadãos romenos de etnia roma.”
– Teodor Baconschi, 2010, então Ministro de Relações Exteriores
Quando eu digo racista, eu também incluo pessoas que simplesmente usam linguagem ofensiva abertamente e com plena naturalidade quando se referem a pessoas de outras etnias ou que são hostis à ideia de sequer tentarmos integrá-los. Esses são abundantes. Eles concordam, se questionados, que os problemas sociais endêmicos nessas comunidades são causados por exclusão social e falta de educação apropriada, e que não são biologicamente inevitáveis, e muitos negam ser racistas. Mas enquanto eles mantiverem um discurso hostil, não deixarão de ser parte do problema. Para ser justo, a afirmação do ministro foi prontamente atacada por diversas ONGs no país, que clamaram por sua renúncia, e o Conselho Nacional de Luta contra a Discriminação afinal o declarou culpado de intolerância. Ou seja, sim, existem pessoas fazendo um ótimo trabalho, poderia ser muito pior. Mas também poderia ser bem melhor.
Tem gente, tanto no Brasil quanto aqui, que provavelmente me acusaria de impor aos outros uma atitude “chata e politicamente correta”. No Brasil porque vêem a correção política como uma violação da liberdade de expressão e um obstáculo à expressão intelectual e artística irrestritas. Aqui porque essa auto-censura é vista como algo falso, ridículo, e porque é considerado muito mais autêntico dizer o que pensa sem reservas. Pode ser que haja valor nisso no sentido de que pelo menos sabemos como as pessoas de fato pensam, o que pode ser mais difícil no Brasil, por exemplo. Eu também concordo que a correção política pode às vezes perder o controle atingir níveis preocupantes que atrapalham um debate aberto e honesto e não é de nenhuma forma construtiva. Mas eu diria que o outro extremo é ainda mais perigoso. Existe um custo quando se diz o que se pensa sem reservas sobre temas delicados, e esse custo ultrapassa os benefícios.
Fazer comentários racistas ocasionalmente pode parecer inofensivo desde que não se haja de acordo com eles, mas não é tão simples assim. Violência inter-étnica não explode do nada sem motivo. É o produto natural de um clima de animosidade que é cozido em fogo brando por anos até que finalmente chega a hora do jantar. A organização genocidewatch (algo como “vigias do genocídio”) cita o discurso de ódio generalizado como um dos primeiros estágios que precedem o genocídio. Se o genocídio parecer um problema distante e irrelevante, uma olhada no artigo lista de genocídios por número de vítimas da Wikipédia é fortemente recomendado. Se seu nível de empatia se aproxima de níveis sociopaticamente baixos e a lista não te impressionar, documentários com imagens fortes podem ser facilmente encontrados online gratuitamente. Recomendo.
Se você acha que eu estou fazendo tempestade em um copo d’água, que não existe chance de um genocídio acontecer de novo na Europa nunca mais, eu pergunto: vale realmente a pena correr o risco? Além do mais, o genocídio pode ser o perigo mais dramático do discurso discriminatório generalizado, mas existem outros, mais sutis, mas mais tangíveis. O ser humano é um animal profundamente social e nossa atitude frente a outros e a nós mesmos é profundamente moldada por nossa socialização, especialmente na infância, mas não somente. Uma ótima ilustração sobre como um discurso discriminatório pode prejudicar o desenvolvimento social, psicológico e cognitivo de grupos marginalizados é o experimento escolar de Jane Elliott. Novamente, recomendo.
Eu prefiro ser chato do que assistir passivamente enquanto pessoas inertes, por falta de interesse, engajamento social ou amnésia histórica frente às desgraças que o ódio étnico já causou à humanidade, reproduzem e reforçam um discurso fatalista e racialmente estereotipado que só colabora para a manutenção de grupos vulneráveis na base da hierarquia social, calando discussões potencialmente construtivas com comentários derrotistas e reforçando senão amplificando a hostilidade e rancor étnico mútuo já presentes na sociedade.