Conferência Humanista do Leste Europeu

Fonte:  FotoStudio42

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Ano passado vim morar na Romênia e uma das formas de tentar me socializar e me integrar por aqui foi procurando me envolver com a comunidade secular-humanista local. Em Abril entrei como membro na ASUR (“Asociația Secular-Umanista din România”, acho que dispensa tradução) e uma das atividades em que participei foi a Humanist Eastern European Conference (Conferência Humanista do Leste Europeu). A conferência era focada no Leste Europeu, mas na prática era aberta e aceitava aplicações de qualquer indivíduo e reuniu membros de instituições humanistas de toda a Europa e até do Cáucaso, como o Azerbaijão. O evento foi muito interessante e me senti responsável por compartilhar minha experiência com a comunidade humanista Brasileira, de forma que tento contribuir aqui com meu resumo e impressões sobre a conferência.

Um pouco de background

A Romênia tem 19.9 milhões de habitantes, o que faz dela o sétimo país mais populoso da Europa. Com uma renda per capita estimada em 19,7p12 int$ (em paridade de poder de compra) em 2014, é um dos países mais pobres da União Européia, da qual faz parte desde 2007, ficando atrás somente da Bulgária. Isso ainda a deixa, porém, 14 posições à frente do Brasil no ranking mundial. Os países do Leste Europeu tem muito em comum entre si e, embora apresentem níveis de pobreza e desenvolvimento humano relativamente parecidos com os da América Latina, os continentes são profundamente diferentes.

A Europa Oriental passou por uma longa e rígida ditadura comunista que a isolou do resto do mundo por décadas e a devastou economicamente. Uma das possíveis consequências positivas desse episódio traumático da história, porém, foi a manutenção de uma índice de desigualdade social relativamente baixo que se mantém até hoje. O coeficiente Gini da Romênia por exemplo é de 33.2 enquanto o do Brasil é de 50.8. Para se ter uma ideia, o índice do país mais igualitário é de 23 (Suécia) e do mais desigual 65 (África do Sul)[ref]List of countries by income equality[/ref].

Outro fator interessante a se levar em conta é que o Leste Europeu ainda é uma região profundamente rural. Enquanto no Brasil 90.6% da população vive em zonas urbanas, na Romênia o número é apenas 54%[ref]Urbanization by country[/ref]. Cluj-Napoca, onde eu moro, é a segunda maior cidade do país com apenas 420 mil habitantes em toda a região metropolitana. Isso se reflete em uma sociedade bastante tradicional, onde quase todos os valores e costumes que moldam a identidade nacional ainda remetem a um estilo de vida rural que mudou surpreendentemente pouco ao longo dos séculos e onde a religião tem um papel central. Isso combinado com o fato de que o país nunca recebeu um grande influxo de imigrantes também resulta em uma grande homogeneidade racial, religiosa e cultural, o que não colabora para uma sociedade muito cosmopolita.

As religiões predominantes aqui são o Cristianismo Ortodoxo (81.04%), seguido pelo Catolicismo Romano (4.33%), Grego (0.75%-3.3%) e denominações protestantes (6.2%) predominantemente tradicionais como Calvinismo, Luteranismo etc, sendo o neo-protestantismo um fenômeno mais recente. Durante o comunismo apenas a igreja Ortodoxa foi tolerada, com a condição de que apoiasse o sistema. Muitos membros do clero foram presos e perseguidos por não se submeter às regras impostas pelo regime sobre a igreja. A única minoria racial é o povo cigano, existindo também uma grande população de etnia húngara na Transilvânia e em menor número saxões. Na região de Dobrogea existem também as populações turca, tártara e lipovana, mas todas muito pouco numerosas.

Conferência

A conferência foi organizada em Bucareste sob o tema “Da mídia social a políticas públicas” pela Associação Humanista Romena (AUR) em parceria com a ASUR e com o suporte da IHEYO. O evento reuniu 60 participantes e incluiu palestrantes como Bob Churchill (IHEU), Nicola Young (IHEYO), Julie Pernet (EHF) e Emma Bell (Young Humanists UK), bem como o parlamentar romeno Remus Cernea (AUR), Toma Pătrașcu (presidente da ASUR) e Florin Buhuceanu (ACCEPT Romania). As questões levantadas foram diversas, mas a recorrência de alguns temas característicos ilustraram bem quais são alguns dos problemas crônicos que afligem a região.

Igreja e dinheiro público

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”
– Artigo 19 inciso I da constituição brasileira

Graças à este trecho da constituição o financiamento de igrejas com dinheiro público felizmente não é um problema crônico no Brasil. Embora existam casos de quebra dessa lei, se devidamente acionada, a justiça a princípio funciona e os culpados são devidamente punidos[ref]e.g. Cesar Maia pode perder direitos políticos por 5 anos[/ref].

Na Romênia não é bem assim. De acordo com estudos, oficiais de estado direcionam mais de 100 milhões de euros anualmente à igreja para cobrir o salário de padres e outros gastos, incluindo a renovação de propriedades da igreja e a construções de novos templos. Um relatório da BBC revela que cerca de 10 igrejas são construídas por mês no país. O parlamentar romeno abertamente ateu e membro da AUR Remus Cernea, um dos palestrantes na conferência, argumenta que muitos políticos fornecem dinheiro público à igreja em troca do suporte do padre durante a campanha eleitoral. “Você vê que frequentemente as companhias que constroem as igrejas são propriedade de pessoas muito próximas dos políticos. Então é como um círculo de dinheiro.”[ref]Why Is Poverty-Stricken Romania Building So Many Churches?[/ref]

18.300 igrejas. 4.700 escolas. 425 hospitais. Amém.

Cartaz ASUR próximo ao palácio do parlamento: 18.300 igrejas. 4.700 escolas. 425 hospitais. Amém.

Toma Pătrașcu em sua palestra reconta o projeto da ASUR em que outdoors foram colocados em locais estratégicos da capital para protestar contra os grandes gastos com a igreja e conscientizar a população sobre o problema. Toma também critica a demagogia da Igreja Ortodoxa Romena, que abusa do discurso de vítima do comunismo para justificar seu atual crescimento exagerado e imperialista.

Endoutrinação religiosa em escolas públicas

Embora a constituição romena garanta a liberdade religiosa e de pensamento[ref]“A liberdade de pensamento e opinião, tal como a liberdade de crença religiosa, não pode ser limitada sob nenhuma forma. Ninguém pode ser coagido a adotar uma opinião ou aderir a uma crença religiosa contrário a suas convicções.” – Artigo 29.1 da constituição romena[/ref], ela também garante o direito ao ensino religioso em escolas públicas[ref]“O estado assigura a liberdade de ensino religioso de acordo com os requisitos específicos de cada culto. Em escolas públicas, o ensino religioso é organizado e garantido por lei.” – Artigo 32.7 da constituição romena[/ref]. Em teoria todos os cultos deveriam estar representados nas escolas, mas a homogeneidade religiosa da população e a limitada oferta de professores de diferentes confissões, entre outros fatores, resulta em uma educação de facto pouquíssimo diversa e predominantemente ortodoxa.

Até recentemente, essa aparente contradição legal era resolvida com a possibilidade dos pais poderem desmatricular seus filhos da disciplina com a simples assinatura de um pedido, sendo a matéria portanto facultativa opt-out, requerendo pedido para desmatriculação. Esse ano, porém, pós anos de ativismo legal por parte de Emil Moise, também presente como palestrante, a matéria finalmente se tornou opt-in, requerendo pedido de matrícula àqueles que quiserem participar.

No Brasil, embora a legislação não proíba explicitamente o ensino religioso nas escolas, na prática a matrícula automática de alunos de escola pública em aulas de religião não é tão comum e certamente não chega a ser um problema nacional, com propostas nessa área sendo delicadas e levantando difíceis polêmicas legais[ref]Debate: Ensino religioso na rede pública de educação[/ref]. Surpreendentemente esse problema é um problema muito mais urgente na Europa, não só oriental como mesmo ocidental. Segundo Nicola Young, presidente da IHEYO, dependendo da sua localização pode ser difícil encontrar escolas públicas seculares no Reino Unido, tendo ela mesma feito aulas de religião em uma escola pública associada à Igreja Anglicana.

Direitos reprodutivos

Após uma dura política natalista e anti-aborto implementada pelo ditador comunista Nicolae Ceaușescu, uma das inúmeras mudanças trazidas pela revolução foi a legalização do aborto sob demanda nas 14 primeiras semanas de gravidez. Com mais de 9000 mortes como resultado de tentativas de aborto em clínicas clandestina, a população ficou relativamente traumatizada e a Romênia tem uma opinião pública extremamente favorável ao aborto[ref]Na Romênia 78% das mulheres entre 15 e 44 anos acreditam que, em qualquer situação, uma mulher sempre tem ou deve ter o direito de decidir sobre sua própria gravidez, incluindo realizar ou não um aborto.[/ref], algo inimaginável no Brasil[ref]Maioria defende que lei sobre aborto não seja ampliada[/ref]. Mas uma lição que eu aprendi com a situação aqui é que mesmo após conquistadas, leis precisam ser preservadas. A igreja ortodoxa pode ser relativamente inofensiva com relação ao aborto, mas cultos neo-protestantes estão crescendo, e há alguns meses organizaram em parceria com católicos romanos e gregos o movimento de “40 dias pela vida”.[ref]“40 Days For Life” Or Steps Towards Limiting Women’s Sexual And Reproductive Rights In Romania[/ref]

LGBT

Com uma sociedade tradicionalista e rural, não é surpresa que a comunidade LGBT não tem muita visibilidade, e a igreja ortodoxa, como era de se esperar, faz o que pode para mantê-los marginalizados, como diz o palestrante Florin Buhuceanu, diretor da ONG pró-LGBT “ACCEPT Romania”. Em países como a Rússia o grupo é duramente perseguido, sendo inclusive efetivamente impedido de se organizar, lutar por seus direitos e oferecer suporte a membros da comunidade por leis absurdas como a infame lei contra “propaganda gay”. Na Romênia a situação não é tão ruim, no sentido de que pelo menos não há leis explicitamente anti-LGBT nem casos habituais de violência e crimes de ódio. Mas a questão gay simplesmente não faz parte do debate público. Não podem se casar, adotar crianças e o tabu acerca deles os torna praticamente invisíveis na sociedade. Como consequência disso, embora a comunidade humanista os apóie, direitos LGBT não é um tema tão central nas campanhas secularistas em comparação com o Brasil.

Feminismo

Eu sempre assumi como fato, baseado na minha experiência pessoal, que a comunidade humanista é em geral pró-feminista, mesmo embora muitos possam discordar de algumas vertentes do mesmo, o que é normal dada a heterogeneidade do movimento. Um dos meus choques aqui na Romênia foi observar a popularidade do anti-feminismo não só na população em geral, mas mesmo dentro da comunidade humanista. Foi deprimente ver uma discussão sobre o assunto no grupo oficial de membros ativos da ASUR se degenerar em uma flame war infantil enquanto os administradores evitavam envolvimento por se tratar de “um tema polêmico”. É um alívio entrar na página interna da LiHS e ver Simone de Beauvoir na foto de capa. Por enquanto isso é inimaginável por aqui.

Direitos humanos e minorias

A falta de envolvimento com questões LGBT e feminismo na verdade é apenas um exemplo concreto de um fato mais genérico que é a falta de envolvimento com questões de direitos humanos e minorias no geral. Na realidade, a comunidade LGBT é a minoria mais apoiada pelo movimento humanista. Por um lado faz sentido, eles são a minoria mais diretamente perseguida por motivos religiosos, não existem grupos religiosos minoritários perseguidos como os praticantes de cultos africanos no Brasil por exemplo.

Além do mais, a verdade é que a sociedade romena é utopicamente pacífica se comparada à brasileira. Mesmo se pensarmos nos ciganos, a minoria mais excluída, na prática eles não morrem nas mãos de um estado corrupto e abusivo, não são queimados vivos por jovens enquanto dormem em bancos de praça e nem são espancados por justiceiros por suspeita de roubo. Mas ainda assim acredito que poderia e deveria haver mais envolvimento. O problema do racismo e exclusão social é real[ref]Everyday hate speech in Romania[/ref], e não só faríamos bem ao lutarmos contra ele, mas também ajudaríamos a melhorar a imagem do movimento humanista, que ainda é visto por muitos no mundo inteiro como frio e antagonista mais do que inclusivo e benevolente.

Mas embora essa tenha sido não só minha impressão geral sobre o foco do movimento na Europa Oriental como inclusive de colegas romenos, não é nenhuma regra sem excessão. A organização croata Centro para a Coragem Civil, por exemplo, cujo livro Humanismo para Crianças tive a chance de comprar, lista entre seus objetivos promover “coragem civil, humanismo evolucionista, ativismo feminista e solidariedade, direitos humanos, igualdade de gêneros, pensamento livre e crítico, secularismo e mentalidade científica e racional”[ref]Center for Civil Courage – The Center[/ref].

Conclusão

O movimento humanista, embora tenha princípios bem claros, apresenta na prática diferenças interessantes dependendo da cultura local. Examinar os diferentes problemas que afligem diferentes regiões nos dá uma visão mais ampla do humanismo no mundo e nos ajuda a pensar fora da caixa e a encontrar inspiração sobre como abordar os problemas do Brasil sem repetir erros dos outros. Os problemas dos países do Leste Europeu são muito parecidos entre si. Todos tem uma igreja ortodoxa poderosa e intimamente ligada ao estado, uma população em grande parte rural e tradicionalista com uma comunidade LGBT profundamente marginalizada.

Por outro lado, embora o comunismo tenha causado trauma, talvez tenha quebrado o tabu acerca da irreligiosidade, sendo abertamente ateu o primeiro presidente eleito (com 85% dos votos) na Romênia após a queda do comunismo[ref]Romanian general election, 1990[/ref] além de parlamentares como Remus Cernea. No Brasil se declarar ateu ainda é suicídio político. O aborto também é predominantemente legal no Leste Europeu[ref]Abortion law[/ref], enquanto no Brasil mulheres ainda morrem em clínicas clandestinas graças a uma legislação amplamente apoiada por uma população cujos valores morais ainda são ditados pela religião. Embora uma população massivamente urbana nos tenha provavelmente ajudado nas últimas conquistas no campo LGBT, os níveis de violência que acompanham essas características demográficas tornam difícil responder em que região é melhor de se viver para essa minoria.

Apesar de haver poucas estatísticas disponíveis no Leste Europeu, a nível global a irreligiosidade é uma tendência clara. O que também parece ser, infelizmente, é o crescimento do extremismo. Na era da globalização, as mesmas ferramentas que permitem jovens questionarem sua fé e adotarem valores progressistas de qualquer lugar do mundo sem se sentirem isolados também permitem neo-fascistas e extremistas religiosos formarem uma comunidade ativa e global, como nos alerta Maajid Nawaz. Um dos desafios da nossa geração é avançar valores seculares e progressistas evitando a polarização e o backlash reacionário. Infelizmente ainda não temos um movimento humanista muito coeso e colaborativo na região do Brasil e América Latina em geral, como existe na Europa, por exemplo. Depois da conferência, não pude deixar de indagar se não deveríamos organizar algo parecido. Tenho certeza que cada país teria algo relevante para compartilhar e aprender. Quem sabe o World Humanist Congress em 2017 não é apenas um começo?

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