Se você não acredita em nada, por que não rouba ou se mata logo?

niilismo evolucionistaQuando se adota uma visão de mundo cética e racionalista (como a descrita em mais detalhe no texto “Seria o racionalismo um sistema de crenças?“), uma reação comum é a de nos perguntarem por que não roubar, matar, ou simplesmente nos suicidarmos já que a vida não faz sentido. Neste depoimento, tento mostrar alguns equívocos dessa pergunta e como pode ser possível dar algum sentido à vida fora da religião.

Niilismo e existencialismo

O ceticismo e racionalismo não teriam como não levar ao niilismo. De fato, se concluímos que só abordagens científicas são justificadas e rejeitamos visões religiosas, não há razão para acreditar que a vida humana tenha algum valor ou propósito metafísico absoluto. Não faz sentido sequer supor que exista livre-arbítrio, já que o que determina nossas ações é uma cadeia de eventos que se inicia antes mesmo do nosso nascimento (esse breve texto explica melhor minha linha de raciocínio). Alguns imediatamente perguntariam: “Por que você não se mata então?”. Existe uma série de motivos. Alguns, diria serem biológicos, como ter um certo medo da morte e da dor, e até simpatia por pessoas que sofreriam com a nossa perda. Mas isso não é tudo. De fato muitos de nós tentamos dar um propósito à vida além de evitar a dor e a morte (até porque essa última é complicada de se evitar).

Para começar, embora haja motivos para duvidar do livre arbítrio em um nível filosófico, na prática nossa incapacidade de compreender os mecanismos do universo em toda sua complexidade faz que que não consigamos saber o porquê de tudo. A falta de um conhecimento absoluto do que determina nossas escolhas, portanto, nos permite viver na ilusão de que são livres. Isso, combinado com o desconhecimento de nosso destino (em um sentido determinista), nos possibilita dar um sentido pessoal a nossas vidas. Sartre dizia que a existência humana “precede a essência”. Diferente de uma tesoura, por exemplo, cujo propósito de cortar (essência) determina (antecede) sua existência física, a existência física do ser humano é que determina sua essência, já que não existe um criador que nos atribui propósito ao nos criar. Sendo assim, é competência do próprio ser humano atribuir sentido a sua vida. Na prática, todos já dão algum sentido à vida, nem que seja o hedonismo mais rudimentar e a busca por conseguir obedecer a certas pressões da sociedade (e.g. ficar rico, comprar um carrão e transar no banheiro da balada). O mais difícil é achar algo que realmente nos satisfaça e conforte, permitindo que nos conformemos com a finitude de nossas vidas ao invés de recorrer a fantasias de vida eterna.

O filósofo americano Daniel Dennett, depois de ser questionado muitas vezes sobre a clássica pergunta sobre “o sentido da vida”, formulou uma resposta rápida e prática:

Encontre algo mais importante do que você é e dedique sua vida a isso.

Eu não poderia concordar mais. Essa é uma filosofia que de fato guia minha vida. É claro que, o que é mais importante do que nós mesmos, é uma escolha íntima e subjetiva. Eu, pessoalmente, tento fazer o que posso para causar um impacto positivo no mundo. Na prática, acho que qualquer um que se dedique a alguma causa ou mesmo uma área acadêmica acredita que esteja colaborando para um mundo melhor. Imagino que, para Dennett por exemplo, um mundo sem filosofia seria um mundo pior. Nem todos seremos grandes filósofos, cientistas ou acadêmicos, mas mesmo nas pequenas ações podemos tentar fazer alguma contribuição. Mesmo escrever em um blog, que provavelmente nem vai ser lido por tantas pessoas, já me traz algum sentimento de realização. Resumindo, diria que o sentido que encontrei para minha vida é ser construtivo. Se pudesse oferecer grandes contribuições para o aprimoramento da sociedade e um futuro mais desenvolvido, isso me traria, acredito, um certo senso de imortalidade. Enquanto não alcanço posição para oferecer as grandes, porém, me contento com as pequenas.

Além dessas causas nobres, a ideia de outras realizações um tanto mais carnais e de mais fácil alcance também traz conforto a alguns de nós. Elas incluem principalmente a formação de uma família e a criação de descendentes. Não sei se é um instinto paternal inato ou uma internalização da lógica evolucionista de propagação dos genes consequente de nosso interesse pelo tema, mas a idéia de que teremos filhos para nos despedir na hora da morte pode ser bastante confortante. Esse não é necessariamente, porém, o conforto que eu mais encoraje, afinal o mundo já sofre de uma super-população. Em todo caso, quando menciono filhos, o faço de um contexto de social que dificilmente implica mais de dois.

Além da transmissão dos genes, e talvez mais importante até do que esta, outro processo com aspectos imortalizantes é a disseminação de memes. Richard Dawkins definiu memes (uma analogia a genes) como unidades de transmissão de cultura. Ideias que se reproduzem através da comunicação e sofrem adaptações através das imperfeições da comunicação (mutações) e da mistura com outras idéias (como na reprodução sexuada). Por algum motivo instintivo, que não sei explicar mas que provavelmente seria assunto interessante para estudo, transmitir ideias é algo que em si traz prazer a mim e a outros. Discutir, trazer insights, colaborar para a reflexão de outras pessoas e influenciar o mundo à minha volta com as minhas ideias é algo que me traz grande prazer. Fazem me sentir útil, como se eu tivesse tido um papel a desempenhar nesse planeta. Como se eu permanecesse vivo nessas ideias, nessas influencias, nesses memes.

Todos devem deixar algo para trás quando morrem, disse meu avô. Um filho, um livro, uma pintura, uma casa, um muro construído ou um par de sapatos feitos. Ou um jardim plantado. Algo que sua mão tocou de alguma maneira, de forma que sua alma tenha para onde ir quando você morrer, e quando as pessoas olharem para aquela árvore ou flor que você plantou, você esteja lá.” – Ray Bradbury, Fahrenheit 451

Existe grande interseção entre o sentimento de tornar o mundo melhor e simplesmente o de propagar ideias e influenciá-lo, mas ainda assim diria serem distintos. Na verdade, o argumento do bem moral é uma forma de racionalizar esse segundo, o que nos leva a uma outra questão importante.

Moralidade e utilitarismo

De uma hora para a outra, não há mais uma autoridade divina sobre a qual possamos construir as bases de nossa moralidade. Como fazer então para distinguir o certo do errado? Frans de Waal argumenta que, na verdade, essa é uma capacidade inata, que em algum grau compartilhamos com outros primatas. De fato, certos atos simplesmente nos chocam em um nível emocional. Mas será que podemos sempre contar com sentimentos intuitivos para determinar a atitude mais moralmente aceitável? Nós humanos somos capazes de um alto grau de raciocínio, de forma que podemos imaginar as consequências de nossos atos e a desejabilidade de cada possível cenário. Somos capazes de entender que certas atitudes trariam prazer, e que outras trariam sofrimento. E o reconhecimento dessas emoções em outras pessoas nos afeta emocionalmente, pois desenvolvemos a capacidade de empatia. Somos, portanto, capazes de entender que um botão não deve ser apertado se nos for dito que seu pressionamento aciona uma arma que atinge uma vítima. Mas aí temos um problema. Há uma linha de raciocínio envolvida. Não é mais um simples sentimento interno poderoso o suficiente para nos conter (“Ah! Que horror, um botão!”). E conforme a situação fica mais complexa, fica difícil imaginar como nos sentiríamos dependendo do resultado. É aí que entra o utilitarismo.

O utilitarismo é uma forma racional de se ver a moral, que define o bem de forma quase matemática como a maximização do prazer e minimização do sofrimento. De fato, pode parecer óbvio, e diria que intuitivamente já usamos em grande parte uma lógica utilitarista. Mas em todo caso, acho importante termos essa definição conscientemente em nossas mentes. Posto dessa forma, é difícil discordar. Como diz Sam Harris, com relação ao sofrimento ser ruim e o conforto bom, há grande consenso. O problema reside no que acredita-se ser a melhor forma de alcançar esses objetivos, no processo de racionalização que parte desse princípio até chegar na tomada de uma decisão. A discordância é mais com a lógica do que com a moral.

Alguns atacam o simplismo do utilitarismo. De fato, muitos dizem que “sem dor não há prazer”, de forma que fica difícil definir quando o utilitarismo teria alcançado seu objetivo final, já que 0% sofrimento e 100% prazer é impossível e irrealista, além de que o que é prazer para um pode não ser para outro etc. Mas ainda assim é um princípio útil, que ajuda a guiar nossas decisões. Afinal, todos sabemos que há muita melhora a ser feita antes que tenhamos de fato essas dúvidas. Outro argumento pertinente seria que a melhor forma de erradicar o sofrimento humano seria extinguindo a espécie da forma mais inesperada e indolor possível. O utilitarista poderia argumentar, porém, que isso não maximiza o prazer. Em todo caso, repito que o utilitarismo é útil para guiar nosso raciocínio, mas não necessariamente para substituir nossos instintos mais básicos. Acredito que se fizéssemos uma pesquisa perguntando como as pessoas se sentem com relação à destruição da humanidade, a resposta seria bastante unânime. Ainda assim é sempre um exercício fundamental analisar quanto sofrimento uma atitude causaria e quanto conforto traria para quantas pessoas. Afinal, mesmo que a definição do bem perfeito como erradicação completa do sofrimento seja simplista e inviável, sua busca de forma alguma deixa de ser frutífera. Muito pelo contrário. Podemos não saber onde é o fim da escada, mas sabemos que temos que subir.

Dissonância cognitiva e comparação social

A própria estrutura desse texto mostra uma abordagem que em certo grau consiste em justificar e racionalizar uma série de sentimentos e opiniões desenvolvidas ao longo da vida, aperfeiçoando-as e adaptando-as em uma tentativa de eliminar contradições. Na prática, todos fazemos isso. É parte do comportamento humano. É o que diz Leon Festinger, que chama o estado de conflito interno em que não conseguimos definir nossas opiniões de forma coerente de um estado de dissonância cognitiva. Esse é um estado psicologicamente desconfortável e inquietante, e leva o indivíduo que o experiencia a tentar de alguma forma eliminá-lo. Seja adaptando seu comportamento, suas opiniões, ou mesmo evitando as situações que chamem atenção para a dissonância.

Outro conceito estudado por Festinger foi o de comparação social. Este, por sua vez, trata de conflitos externos. Segundo o autor, quando não há parâmetros objetivos segundo os quais um indivíduo possa se auto-avaliar, essa avaliação se torna comparativa. Sendo assim, quando os ideais e valores de um indivíduo destoam daqueles do grupo social onde está inserido, há também o sentimento de desconforto psicológico. Isso faz com que em grupos sociais onde há um intervalo de possíveis padrões e valores, haja pressão para a uniformidade. Os grupos teriam uma cultura própria, e os indivíduos que se adequam mais a esses padrões conquistam uma posição social mais alta. Esses indivíduos têm maior probabilidade de mudar a opinião dos outros, e menor probabilidade de mudar sua própria opinião.

As noções de dissonância cognitiva e comparação social foram alguns dos conceitos mais reveladores e frutíferos da psicologia social. Acredito que a consciência desses fenômenos é fundamental para o auto-conhecimento. Com base neles, Wendy Treynor, por exemplo, explica o mecanismo de “pressão social” (peer-pressure). Um novo indivíduo entra em um grupo. Os valores e ideais desse grupo, contrastam com o dele. Isso gera um desequilíbrio externo (por causa da comparação social). O indivíduo, consequentemente, adota os valores do grupo. Imediatamente ao fazer isso, porém, há um desequilíbrio interno (dissonância cognitiva), pois esses novos valores contrastam com os tidos previamente. O indivíduo então readapta suas visões e cria uma nova identidade. É mais complexo do que estar artificialmente tentando seguir um padrão externo e desistindo de “ser você mesmo”. Quando o processo se conclui, os novos padrões realmente se tornam parte de você. Houve uma genuína mudança de identidade. Outra solução, é claro, se um indivíduo está seguro de seus valores, é deixar o grupo que o pressiona para mudá-los. Mas onde estou querendo chegar com tudo isso?

O absoluto, o universal e o relativo

Por algum motivo, o absoluto nos traz conforto. Por muito tempo foi assim que o ser humano enxergou o mundo: verdades absolutas, valores morais absolutos etc. Quem fizesse parte do grupo que compartilha dessas visões, estava certo. Quem não fizesse, estava errado. E por muito tempo, e ainda hoje, isso conforta muitos de nós. É como se o conforto da validação de uma ideia, através da comparação social em um grupo culturalmente coeso, fosse tão profundo e subconsciente que nós de fato passamos a acreditar que aquilo seja verdade a nível absoluto. Nos tempos pós-modernos e relativistas em que vivemos, porém, esse conforto parece ter sido tirado de muitos de nós. Principalmente ateus e agnósticos.

Nesse depoimento, mostro como alguns de nós nos esforçamos para construir um sistema de crenças e opiniões com base em algumas premissas axiomáticas sem nos contradizer. Premissas essas que gostaríamos que fossem compartilhadas com pelo menos alguma parcela da sociedade, de modo a evitar desequilíbrio externo e podermos nos comunicar dentro de algum grupo, recuperando em parte o senso de algo que algo é absoluto. Essas são, portanto, premissas bem básicas. No caso, parto de valores pessoais que desenvolvi de forma a me confortar, dentro de um contexto cético e fundamentalmente niilista, e tento calcá-los em última análise sobre valores universais, como o da ética utilitarista. É claro que a mente humana está em constante mudança, e dificilmente alguém chega um dia a uma versão final e imutável de seu sistema de opiniões (embora por vezes cheguem perto disso). Mas fica aqui o relato de uma busca por conforto psicológico e consonância cognitiva, calcada em preceitos supostamente universais na tentativa de tornar o niilismo e o relativismo menos desconcertantes.

No meio científico atual, entende-se que a verdade não é absoluta. Mas assume-se como verdade, por razões práticas, toda hipótese a respeito da qual há consenso. Por que a moralidade não pode ser tratada da mesma forma? Segundo Harris, isso é um padrão-duplo (double-standard). De fato, é uma observação pertinente. Afinal, se o absoluto não existe, o mais próximo dele que podemos chegar é o universal.

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